Marçal é o subproduto da antipolítica alimentada pelo moralismo hipócrita
No Brasil, desconfiança histórica da população em relação à política é alimentada pela imprensa
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Não é novidade que o brasileiro médio não gosta de discutir política. Quando se toca no assunto, de maneira geral, é comum ouvir pessoas dizendo que “todos os políticos são ladrões e iguais”.
Essa visão de mundo, entretanto, possui origens que remontam aos tempos coloniais. Patrimonialismo, mandonismo e clientelismo são práticas que fazem parte da história do Brasil e que remetem a relações promíscuas entre o poder público e o privado feitas de maneira informal ou ilegal para defender os interesses de alguns indivíduos ou grupos em detrimento da maioria.
A intenção deste artigo, porém, não é se aprofundar nas origens dessa visão, mas olhar para o seu fortalecimento recente e as suas consequências. Essa noção histórica foi alimentada na última década por um discurso midiático moralista apoiado na Operação Lava Jato, que resultou no fortalecimento de uma extrema direita que pariu figuras como Pablo Marçal (PRTB).
A Lava Jato foi amplificada e reverberada por uma narrativa udenista propagada pelos veículos de comunicação tradicionais do país, que levou a uma condenação generalizada da política dentro da sociedade brasileira. O termo “udenismo” se refere à União Democrática Nacional (UDN), partido conservador criado para combater Getúlio Vargas após o término do Estado Novo, em 1945.
A expressão significa um moralismo de cunho golpista que trata a corrupção como o principal problema do país, cuja causa seria um “déficit” moral do brasileiro. Segundo a cientista política Lucia Hippolito, a UDN era o partido das classes médias urbanas e tinha como pautas a defesa da moral e dos bons costumes e a honestidade.
Jânio Quadros, na campanha presidencial de 1961, popularizou as ideias udenistas com o seu símbolo da vassoura que varreria a roubalheira. Prática semelhante à de Jair Bolsonaro (PL), que usou a expressão “a mamata vai acabar” nas eleições de 2018, o qual, por sua vez, inspirou-se no discurso de antecessores como Fernando Collor (hoje no PRD). Ambos alegavam representar um rompimento do sistema político tradicional, mesmo mote de Marçal.
A corrupção, no entanto, é um problema sistêmico, e não moral, e ela não se resolve apenas trocando indivíduos “maus” por pessoas “boas”. Ela permeia toda a nossa sociedade e nossos sistemas político e econômico e necessita de mudanças estruturais para que seja combatida de forma eficaz. Afinal, quem elege os políticos e financia as suas campanhas? Quem os usa para promover interesses particulares às custas do interesse público? Os políticos são frutos da sociedade e os poderes econômico e político normalmente andam juntos.
A Lava Jato, portanto, fortaleceu uma narrativa antipolítica arraigada na sociedade brasileira e potencializada pela mídia. Esse fato, aliado a outros elementos, como a frustração popular oriunda da incapacidade das gestões petistas de promoverem transformações estruturais que realmente melhorassem de forma sustentável a vida do povo, com a construção de serviços públicos de qualidade, acabou resultando na atual conjuntura em que o país se encontra.
Curiosamente, o PT alimentou o mesmo udenismo de que foi vítima. O partido foi inclusive apelidado de “UDN de macacão” por Leonel Brizola (PDT), que via no PT, um partido de origem urbana nas classes médias, o mesmo denuncismo udenista. O PT ressuscitou o udenismo na campanha pelo impeachment de Collor e continuou com a prática quando fez do combate à corrupção uma das suas principais bandeiras, chegando a defender o impeachment de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Nesse vácuo deixado pelo PT, esquerda e sistema político tradicional, cresceram ideias antissistema de extrema direita, que se alimentaram do fracasso da democracia neoliberal e da incapacidade da esquerda de apresentar alternativas para os problemas históricos do povo.
No entanto, se por um lado os governos petistas não aprenderam nada com os seus erros passados e continuam insistindo na mesma política de conciliação que resultou no cenário presente, da mesma forma a mídia mainstream segue errando ao continuar estimulando a antipolítica. Se antes a imprensa estimulou a ascensão da antipolítica apoiada na Lava Jato, agora faz o mesmo dando espaço para figuras que atentam contra a própria democracia.
Foi assim com o bolsonarismo e seu repertório de mentiras e autoritarismo. O fascismo se alimenta justamente da banalização do absurdo e, apesar de todos os sinais dados, os veículos jornalísticos lidaram com inimigos da democracia como se fossem figuras republicanas.
Mesmo após os inúmeros crimes contra a democracia e até contra a vida da população, como visto na pandemia de Covid-19, bolsonaristas continuaram sendo convidados a participar do debate público. Com Marçal, uma versão piorada da extrema direita, o erro se repete, e a imprensa insiste em convidá-lo para debates mesmo que ele não tenha nenhum respeito pelas regras dos mesmos e nem das eleições, já que continua cometendo crimes eleitorais diante da inércia da Justiça Eleitoral.
A Resolução 23.610/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) define que os partidos devem ter pelo menos cinco deputados federais até 20 de julho do ano eleitoral para garantir a participação nos debates, o que excluiria Marçal do embate com outros candidatos.
A “velha mídia”, porém, faz isso porque está em crise e precisa de audiência. Nada mais simbólico do que o fato de José Luiz Datena (PSDB) ter jogado uma cadeira em Marçal durante um debate. O primeiro é um representante dos veículos de comunicação tradicionais, e o segundo, um símbolo das novas mídias online.
A política virou um espetáculo onde o bizarro se torna instrumento da disputa pela atenção do eleitor. Com os episódios de confrontos físicos dos últimos debates, agora a violência, até então usada de forma mais simbólica e verbal (expediente utilizado à exaustão pelo próprio Marçal), consolida-se fisicamente na política como forma de intensificação desse espetáculo, tornando-o ainda mais grotesco e anedótico.
O crescimento da extrema direita é acompanhado pela degradação da política. Ao se infiltrar na esfera pública, ela transforma debates políticos em batalhas culturais, nas quais o foco se desloca da discussão de políticas públicas para uma guerra de narrativas. Essa transformação contribui para o fim do discurso racional e construtivo, substituído por uma retórica de choque e conflito.
A democracia não é um dado da natureza e está em constante construção, precisando ser continuamente conquistada. É um regime frágil que se encontra sempre sob ataque. Para mantê-la, é preciso firmeza na sua defesa e um diagnóstico preciso das suas mazelas e do que pode ser feito para melhorá-la. Para isso, no entanto, é necessário que a arena política como campo de discussão de soluções não seja destruída e substituída por um show de horrores onde o bizarro e o grotesco são premiados.
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