Lula, o governo e a esquerda precisam se reconectar com o povo

Créditos: Ricardo Stuckert/PR

“Aquela história da gente vir a Brasília fazer pressão já não cola mais porque quem está dentro do Congresso Nacional não ouve o barulho lá fora. Pode chover, trovejar, relampejar, quem está dentro do plenário não vê. Você pode fazer passeata de 100 mil pessoas aqui com faixa que os caras só vão ver de noite na televisão. Outro dia eu falei uma coisa que alguém interpretou mal, mas o deputado, senador, governador, têm casa. Então é muito melhor a gente montar o esquema de ir na casa da pessoa com muita educação e falar individualmente com ele. (…) Não é no grito, não precisa falar grosso, não precisa xingar ninguém. É apenas chegar perto de onde ele está porque a forma que nós fazemos protesto não resolve mais.”

A fala acima foi dita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) poucos dias antes das comemorações do Dia do Trabalho. O seu teor, entretanto, não é uma novidade. Em várias ocasiões, Lula afirmou que se orgulha de que o número de greves e manifestações diminuiu durante os seus governos. Em alguns momentos, o presidente chegou inclusive a criticar categorias tanto do setor público quanto privado por realizarem greves.

A realidade é que, durante a década de 2000, a média anual de greves foi de 609, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Comparada à média de 900 greves anuais na década de 1990, é possível afirmar que realmente ocorreram menos greves nos anos 2000, confirmando as falas de Lula.

No entanto, isso seria algo bom ou desejável do ponto de vista da participação popular nas decisões do rumo do país e da melhoria das condições de vida da sociedade? O que essa fala de Lula significa?

‘Volta pra base’

Em 2018, durante um ato da campanha presidencial de Fernando Haddad (PT), o rapper Mano Brown criticou o “clima de festa” do evento e lembrou que era preciso dialogar com as pessoas que não estavam ali, as quais não poderiam ter simplesmente “virado monstros” por votarem em Jair Bolsonaro. “Deixou de entender o povão, já era. Se nós somos o Partido dos Trabalhadores, o partido do povo, nós temos que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar saber”, disse.

De lá para cá passaram-se cinco anos e pode-se perceber que o PT não aprendeu nada com o rapper, pois o abandono do “trabalho de base” pelo partido continua. O discurso de Brown foi cirúrgico ao revelar a transformação sofrida pela sigla, de uma organização que possuía fortes vínculos com as comunidades e periferias para uma organização cuja prática política privilegia quase que exclusivamente as articulações de gabinete.

Com declarações como a do início deste texto, Lula não só desestimula a mobilização popular e fragmenta a luta em grupos de pressão a indivíduos específicos, como incentiva a chamada “política de gabinete”, prática na qual as gestões petistas se basearam para governar. Ou seja, ao invés de se aproximar da sociedade e chamar grandes mobilizações de rua para buscar apoio para pautas de interesse do governo e da sociedade, privilegia-se os conchavos e a negociação de bastidores entre parlamentares e entre o Executivo e o Legislativo, gerando uma despolitização e um imobilismo da sociedade civil.

Esse processo de distanciamento do PT de suas bases, que envolveu não apenas a predominância da “política de gabinete”, mas também uma inclusão social meramente pelo consumo, sem qualquer mudança estrutural da sociedade ou processo de formação política, intensificou-se durante o governo de Dilma Rousseff (PT) com ações de repressão a manifestações, como a elaboração da Lei Antiterrorismo e a repressão aos protestos de junho de 2013 — feita de comum acordo entre o então prefeito Fernando Haddad (PT) e o então governador Geraldo Alckmin (PSDB), ambos integrantes do atual governo — e aos contrários à realização da Copa de 2014 no Brasil.

É revelador que o último presidente a governar o país chamando grandes manifestações de rua antes de Jair Bolsonaro (PL) tenha sido João Goulart, que promoveu imensos comícios para pedir apoio da população às suas Reformas de Base. Desde os anos 1960, nenhum governante de direita ou esquerda havia buscado se apoiar nas ruas para governar, com exceção do ex-presidente de extrema direita. Isso diz muito sobre o vácuo deixado pela esquerda em termos de mobilização popular.

2013 e as reformas que não aconteceram

A principal razão para essa desmobilização social provocada pelo PT é explicada pelo cientista político André Singer em suas obras ao tratar do fenômeno do lulismo. Segundo ele, “como o lulismo é um modelo de mudança dentro da ordem, até com um reforço da ordem, ele não é e não pode ser mobilizador. Isso faz com que o conflito não tenha uma expressão política partidária, eleitoral, institucional”. O lulismo, portanto, buscou um caminho de conciliação, baseado no carisma de Lula, com amplos setores conservadores brasileiros em um grande pacto social conservador, combinando a manutenção da política econômica do governo FHC (PSDB) com fortes políticas distributivistas. Nesse modelo, o Estado tem um “papel proeminente na alavancagem dos mais pobres”, ao mesmo tempo em que garante que os problemas estruturais sociais brasileiros não serão tocados.

Foi justamente essa ausência de resolução dos problemas estruturais que resultou nos protestos de 2013. Um grande sinal do distanciamento do PT de sua base e da falta de compreensão da realidade pelo petismo se deu naquele momento.

Em seu livro Só mais um esforço, o filósofo Vladimir Safatle afirma, conforme relatei em texto da antiga coluna Entendendo Bolsonaro publicada no UOL: “A ilusão fundamental do lulismo consistiu em acreditar que seria possível a sua conservação no poder através da mera gestão do processo de ascensão social. No entanto, a eliminação da tarefa de transformação da institucionalidade política brasileira significava a conservação de núcleos de poder e modelos de negociação que não apenas paralisariam o governo, mas preservariam a estrutura oligárquica do Congresso Nacional e do Poder Judiciário, assim como a capacidade de intervenção dos setores econômicos no processo político”.

Ainda segundo ele, “diferentemente de outros países latino-americanos que passaram por governos de esquerda, o Brasil não reformou sua Constituição nem mudou as regras dos processos eleitorais (…). Da mesma forma, não quebrou contratos (…) ou impôs restrições à circulação de capitais”.

Com o fim do “boom das commodities”, que gerou recursos para o governo e permitiu a distribuição de benefícios tanto para os mais ricos quanto para os mais pobres, e com a má gestão da economia pelo governo Dilma, a promessa de uma vida melhor para aqueles que haviam ascendido socialmente nos governos petistas encontrava-se ameaçada, o que gerou uma “frustração relativa” nos setores que haviam sido favorecidos.

“Não são os mais pobres que fazem revoluções, mas aqueles que se encontram no interior de um processo de ascensão social incompleto. Ou seja, há uma tensão que impulsiona a ação de revolta. Tensão entre satisfação esperada e a satisfação realmente conseguida”, diz Safatle. “Nesse sentido, poderíamos utilizar tal raciocínio e dizer que o governo Dilma não foi capaz de realizar as expectativas de desenvolvimento social produzidas por Lula, criando uma profunda frustração relativa”, a qual teria desembocado nas manifestações de 2013.

Não existe vácuo na política. A incapacidade tanto da direita quanto da esquerda tradicionais em apresentarem soluções reais para os problemas da população resultaram no fortalecimento do discurso antissistema e antipolítico que pariu Bolsonaro. De forma resumida, o bolsonarismo e a eleição de Bolsonaro foram frutos da frustração popular aliada à incapacidade do governo de resolver as demandas da sociedade e de propor a resolução de problemas estruturais históricos do país. Soma-se a isso os desvios éticos do PT e a extrema midiatização desses escândalos de corrupção e criou-se o caldo do antipetismo que resultou no bolsonarismo.

Correlação de forças

Muitos dos elementos acima descritos que resultaram no bolsonarismo, entretanto, ainda se fazem presentes na sociedade, acendendo um sinal de alerta. Se o PT não aprendeu nada com seus erros e continua reproduzindo as mesmas práticas que contribuíram para a atual conjuntura nacional, a pergunta que fica é: o Brasil corre o risco de voltar ao passado e vivenciar um retorno da extrema direita?

Para que isso não ocorra, a resposta mais direta consiste em não repetir os mesmos erros e agir diferente. Se a tentativa de manutenção da política de conciliação de classes e dos arranjos de gabinete já se mostrou limitada e falha, especialmente em uma conjuntura econômica e política desfavorável como a atual, cabe ao governo buscar novas alternativas de ação se não deseja ver o futuro repetindo o passado. Isso passa necessariamente por se reconectar com o povo, empoderá-lo e trazê-lo para a discussão dos problemas da sociedade.

Existem exemplos atuais de países democráticos da própria América Latina que estão realizando transformações profundas de suas sociedades por meio de reformas estruturais com o apoio da população. Na Colômbia, o presidente Gustavo Petro apresentou um projeto de reforma da saúde para criar um sistema público e universal de atenção primária, na esteira de outras cinco reformas de base: reforma tributária, reforma política, reforma do sistema educacional, o plano de desenvolvimento nacional e a lei de “paz total”. Diante da recusa dos partidos liberais e conservadores de sua coligação em apoiar os projetos, teve fim a coligação governista e agora Petro buscará governar e implementar suas propostas com o apoio popular.

No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador nacionalizou o lítio, assegurando que a exploração do recurso mineral será de competência exclusiva do Estado. Esses são exemplos de “reformismo” real, que consiste na realização de reformas estruturais dentro dos marcos do capitalismo, mas que mudam radicalmente a sociedade e a vida das pessoas. Por outro lado, o que o PT tem feito em seus governos até agora sequer pode ser chamado de reformista, pois se baseia apenas em gerir a ordem econômica e social existente com elementos de preocupação social sem interferir nas bases da sociedade brasileira.

Diante disso, pode-se argumentar que não existe no Brasil correlação de forças favorável para a realização de mudanças profundas. Correlação de força, porém, se constrói, não cai do céu. Ela é formada justamente pela mobilização e trabalho de base junto aos diversos setores da sociedade.

Um exemplo prático está no que fizeram as feministas argentinas, que apresentaram um projeto de lei sobre o aborto que sabiam que não seria aprovado porque não havia correlação de força na época. No entanto, ao fazerem isso, obrigaram a sociedade a discutir a questão e acumularam força para retornar com o tema quatro anos depois, em 2020, quando o aborto finalmente foi aprovado na Argentina.

Portanto, se o governo petista não quiser repetir o passado, precisa reaproximar-se da população e chamá-la para a participação política, empoderando-a. Não se pode usar o medo do fracasso e a falta de acúmulo de forças como justificativa para não enfrentar os problemas históricos da sociedade brasileira e fazer as transformações necessárias. Diante da incerteza, o pior é não agir diferente, porque já se sabe no que pode resultar caso faça-se mais do mesmo.