Lula, a submissão ao mercado e a lição da França

Arcos Palácio Planalto e Congresso Nacional

Fachada do Palácio do Planalto, com o Congresso Nacional ao fundo. Crédito: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Satisfazer as demandas do mercado distancia governo e povo e fortalece a extrema direita

 

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O último 7 de julho foi provavelmente o dia mais importante da Quinta República Francesa. O inesperado resultado do segundo turno das eleições legislativas deu a vitória à coligação de esquerda Nova Frente Popular (NFP), liderada pelo partido de extrema-esquerda França Insubmissa, contrariando as expectativas geradas pela liderança no primeiro turno do bloco de extrema-direita Reagrupamento Nacional (RN). 

Após o resultado do primeiro turno, institutos de pesquisa franceses apontavam que o RN seria a única sigla com reais possibilidades de alcançar a maioria de cadeiras necessária para controlar o Parlamento, indicando assim o primeiro-ministro. No entanto, dos 577 assentos da Casa, 180 deverão ficar com a coalizão de esquerda, 159 com a aliança centrista Juntos, do presidente Emmanuel Macron, e 143 com a coligação de extrema direita.

Apesar do sucesso recente da esquerda na França e no Reino Unido, onde o Partido Trabalhista voltou ao poder após 14 anos, a extrema-direita continua crescendo no mundo e no Brasil. Qual a razão deste fenômeno e qual a relação da vitória da esquerda francesa com o cenário político brasileiro? 

Existem várias razões que explicam o crescimento do extremismo, especialmente de direita, no mundo, mas a principal é de natureza econômica. 

Durante a Guerra Fria, a existência do bloco comunista obrigava o capitalismo a realizar concessões criando direitos e políticas públicas visando o bem comum por meio de um Estado forte intervencionista, os chamados Estados de bem-estar social.

No entanto, após o colapso da União Soviética, o neoliberalismo se torna a principal ideologia político-econômica no mundo. Na ausência de um projeto de oposição pelo campo da esquerda que oferecesse resistência, o capitalismo assume então sua face mais selvagem, destruindo direitos e conquistas sociais. 

Nesse cenário, os partidos tradicionais de direita e de esquerda passam a adotar o receituário neoliberal, tornando-se cada vez mais parecidos e convergindo para o centro. Na melhor das hipóteses, partidos de esquerda promovem políticas de cunho social-liberal, buscando “humanizar” o neoliberalismo sem, porém, mexer na estrutura do sistema. Esse é o caso, por exemplo, dos governos do PT no Brasil. 

Essas políticas de austeridade pró-mercado, entretanto, fracassaram em resolver os problemas das vidas dos cidadãos, gerando pauperização, aumento da desigualdade, destruição de direitos e precarização do trabalho. Esse cenário resultou em um caldo de insatisfação e revolta que, se não canalizado por um projeto de esquerda, acaba fortalecendo discursos extremistas de direita antissistema. 

As eleições francesas são, portanto, mais um capítulo da “falência dos centros” que, incapazes de oferecerem respostas adequadas aos problemas das sociedades por adotarem práticas neoliberais, acabam sendo substituídos por alternativas extremistas à esquerda e à direita. Como afirma o cientista político Giuliano da Empoli no livro Os engenheiros do caos, a política deixou de ser “centrípeta” (que converge para o centro) e passou a ser “centrífuga” (tendendo aos extremos). 

Analisando o cenário brasileiro, desde 2010 o filósofo Vladimir Safatle tem alertado para a necessidade de a esquerda escolher um lado – no caso, o das maiorias empobrecidas, diante desse cenário de falência do centro político.

Foi justamente a tentativa de conciliar as elites com os mais pobres em um cenário de crise econômica e saturação da democracia liberal que conduziu o país às Jornadas de Junho de 2013, quando estouraram revoltas pelo país exigindo serviços públicos de qualidade. 

No entanto, este processo insurrecional iniciado em 2013 não foi compreendido pela esquerda institucional que se encontrava no poder à época e nem pelos movimentos sociais, cooptados ou não pelo governo. A revolta acabou sendo dominada pela incipiente extrema direita nacional, defensora da Operação Lava Jato e radicalmente antipetista, a qual seria o embrião do que hoje chamamos de bolsonarismo

Diante desse cenário, Safatle afirma que o processo insurrecional mudou de lado sendo dominado pela extrema direita, enquanto a esquerda tornou-se uma espécie de “partido da ordem” defendendo o status quo forjado por instituições liberais caducas e ultrapassadas que não foram capazes de cumprir as promessas modernas de justiça e igualdade. Como já dizia Walter Benjamin, intelectual da Escola de Frankfurt, “por trás de todo fascismo, há uma revolução fracassada”. 

Qual é a solução para este cenário de colapso da democracia liberal e crescimento da extrema direita? A radicalização do processo de transformação social por meio da realização de reformas profundas que realmente melhorem a vida das pessoas, aprofundando a democracia por meio de processos participativos, concedendo direitos e investindo em serviços públicos gratuitos e de qualidade. É o que propõe, por exemplo, o partido França Insubmissa, que lidera a coalizão de esquerda francesa. 

Para isso, é preciso que o governo Lula pare de apostar nas “políticas de gabinete” e no “toma lá, dá cá” com o Congresso e os partidos e foque na mobilização popular. Manifestações recentes provaram que é possível resistir e pautar o governo e o Congresso, como vimos nas últimas semanas quando estouraram manifestações nas redes e ruas contra a PEC das Praias e o PL do Estupro. Com pouco tempo e pressão razoável, foi possível fazer os parlamentares recuarem dessas pautas.

Porém, no Brasil, o último presidente a mobilizar a sociedade foi João Goulart (1961-1964), quando defendeu as estruturais Reformas de Base antes de ser deposto pelo golpe que inaugurou a ditadura civil-militar (1964-1985). Após ele, apenas Jair Bolsonaro apostou na mobilização das massas. Lula, inclusive, age na direção contrária e, ao invés de aprofundar sua relação com o povo, cede constantemente aos interesses da Faria Lima, tendo realizado recentemente um corte de gastos em despesas obrigatórias de R$ 25 bilhões.

Ademais, neste ano o governo Lula já liberou R$ 22 bilhões em emendas parlamentares, recursos que serão direcionados principalmente aos caixas de prefeituras e que servirão para eleger prefeitos pertencentes em sua maioria ao chamado “Centrão” e à oposição. Eleitos, esses prefeitos servirão como base de apoio aos deputados responsáveis pelas emendas, perpetuando, assim, o imenso poder acumulado pelo Legislativo e a dominância deste poder sobre o Executivo. É o “crime perfeito” que mantém o Executivo refém do Legislativo 

Para romper com essa lógica, o Brasil deveria se espelhar no que está fazendo o presidente Gustavo Petro, na Colômbia. Logo no início do governo, o colombiano propôs uma série de reformas estruturais e, tendo visto os membros liberais de sua coalizão recuarem diante das propostas, rompeu a ampla aliança que o elegeu e incentivou o povo a pressionar o Congresso pelas reformas. Dessa pressão resultou a passagem de uma reforma da previdência que beneficiará milhões de trabalhadores pobres, mesmo o governo sendo minoria no Parlamento. 

Se quiser ser bem-sucedido, portanto, o governo Lula precisará escolher o lado do povo, investir em transformações sociais profundas e parar de repetir os mesmos erros do passado. O fantasma da extrema-direita está à espreita e retornará caso o governo fracasse.