Breque dos apps: o precariado vai à luta, mas até onde?
Trabalhadores precarizados combatem exploração do trabalho atual, mas IA será o gigantesco problema a ser resolvido no futuro
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Desde 2013, com as chamadas Jornadas de Junho, o Brasil é palco de diversas revoltas que evidenciam um esgotamento do sistema político e econômico neoliberal. Desde manifestações contra o aumento de passagem de ônibus, greves de estudantes secundaristas a, mais recentemente, atos contra a jornada de trabalho 6×1 (seis dias de trabalho para um de folga) e paralisações de motoristas de aplicativos, são perceptíveis as rachaduras no edifício do sistema que rege a vida social.
Tais rachaduras tendem apenas a aumentar até colapsar toda a estrutura. Seja pela desregulamentação do trabalho ou devido aos acelerados avanços tecnológicos, cresce no Brasil e mundo afora há pelo menos três décadas o chamado precariado, fruto da chamada “gig economy”, que nada mais é do que um nome bonito, usado por coachs, economistas e empresários que adoram anglicismos, para precarização do trabalho.
Segundo Ruy Braga, sociólogo e autor de três livros sobre o tema, o precariado é uma parcela em constante crescimento da classe trabalhadora que oscila entre o aumento da exploração econômica pela diminuição de salários, eliminação de benefícios e ausência de vínculos empregatícios e a ameaça da exclusão social via desemprego. Ou seja, o precariado é uma subclasse social sem garantias no emprego, que vive em insegurança constante e com instabilidade de renda. No Brasil, país de tradições escravocratas que nunca superou seu passado colonial, o problema ganha dimensões mais dramáticas.
Em 31 de março e 1º de abril passados, dezenas de milhares de motoboys que trabalham em aplicativos de entrega realizaram o “Breque Nacional dos Apps”, uma greve organizada por diversos coletivos de entregadores contra as condições de trabalho precárias impostas pelos apps. Em pelo menos 19 capitais e 59 cidades do país, os trabalhadores paralisaram seus serviços reivindicando aumento da taxa mínima por entrega e do valor pago por quilômetro rodado, entre outras pautas.
Essa foi a maior mobilização nacional dos entregadores desde 2020, quando teve início as manifestações da categoria. Segundo estudo da UFPR que será lançado na segunda edição do livro “O Trabalho Controlado por Plataformas Digitais no Brasil: Dimensões, Perfis e Direitos”, o número de trabalhadores sob controle de aplicativos cresceu 47,9% entre 2021 e 2024, chegando a 2,3 milhões de pessoas.
O setor de transportes e entregas, que reúne 90% da categoria, sofre com o domínio de poucas empresas, o que tem levado à deterioração progressiva das condições de trabalho. Só o iFood detinha, em 2024, 84,7% do mercado de entregas.
O governo Lula (PT), eleito com a promessa de regulamentar o trabalho por apps, perdeu mais uma oportunidade de promover avanços concretos para a classe trabalhadora. Da mesma forma tem agido em relação à pauta do fim da jornada de trabalho 6×1, encampada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT) e já tratada aqui em artigo anterior, que até agora não tem apoio oficial declarado da administração federal.
O PLP 12/2024, elaborado pelo governo para regulamentar o trabalho por aplicativos, mostrou-se um fracasso retumbante e não só não trouxe melhorias para os entregadores como representou um “festival de retrocessos” e o “pior momento da história dos direitos trabalhistas no Brasil”, conseguindo ser ainda pior do que a contrarreforma trabalhista promovida pelo governo Temer (MDB) em 2017, segundo o jurista e professor livre docente de Direito do Trabalho da USP Jorge Luiz Souto Maior.
Isso porque o projeto prevê diversos absurdos, como jornada máxima de até 12 horas de trabalho diário para os motoristas de apps, o que viola a Convenção 01 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a própria Constituição. Ainda segundo o jurista, o desrespeito da proposta à lei trabalhista pode impactar inclusive outras categorias, desde que introduzido um cenário de intermediação por plataformas em diferentes serviços, o que já é uma tendência do capitalismo não mais restrita a profissionais como entregadores.
Esse cenário desolador ganha dimensão política ainda mais grave considerando que o PLP é uma iniciativa de um governo supostamente de esquerda liderado por um ex-líder sindical cuja carreira política foi criada defendendo direitos dos trabalhadores em vez de atacá-los.
No entanto, a precarização do trabalho representa apenas a antessala da distopia para onde a humanidade caminha. Se o capitalismo continuar em seu atual rumo, o trabalho será não apenas precarizado como será em maior parte realizado por máquinas, que tornarão o próprio ser humano uma peça sem utilidade na engrenagem do sistema.
O historiador Yuval Noah Harari, autor do best-seller Sapiens: uma breve história da humanidade, afirma que uma nova classe de pessoas deverá surgir até 2050: a dos inúteis, indivíduos que não serão apenas desempregados, mas que não serão nem sequer empregáveis. À medida que a inteligência artificial supera os humanos em tarefas criativas ou mecânicas, haverá uma redução da necessidade de mão de obra humana no trabalho.
Segundo Harari, será necessário, portanto, a criação de um sistema de renda básica universal que provenha o básico para as pessoas e o grande desafio será como manter todos esses indivíduos satisfeitos e ocupados com atividades dotadas de propósito, pois, caso contrário, poderão todos enlouquecer.
Estudos recentes, como “O Futuro do Emprego no Brasil: Estimando o Impacto da Automação”, do Laboratório do Futuro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostram que a automação afetará fortemente o futuro do emprego no Brasil nas próximas décadas, dado que 60% dos trabalhadores se encontram em ocupações que devem ser drasticamente impactadas por tal processo. Além disso, a pesquisa alerta que a maior parte dos empregos criados no país entre 2003 e 2016 foi em ocupações que se encontram justamente nas faixas de maior probabilidade de automação.
O destino em que chegaremos é fruto das escolhas que fazemos ao longo do caminho enquanto sociedade. Se por um lado a discussão em torno do fim da precarização do trabalho encontra-se em disputa mesmo sem o apoio decisivo do atual governo, por outro não há um plano sequer por parte de nenhum partido, sindicato, movimento ou instituição pública ou privada do país que preveja o que deverá ser feito com as pessoas caso a IA acabe tornando-as obsoletas. Esta é uma pauta, entretanto, que cobrará um preço caro demais para a democracia brasileira caso siga sendo ignorada.
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